Bem vindos à minha fábrica de sonhos!

quinta-feira, 31 de março de 2011

Esta noite...


Eu fechei meus olhos e dormi. Confesso que pensei em nunca mais acordar, confesso que desejei me perder na escuridão pra sempre, deixar de existir, cair no esquecimento, descansar para sempre. Confesso que pedi para que o meu rosto fosse apagado da memória de todas as pessoas que já conheci até hoje, confesso que pedi para que elas me esquecessem, para que cada resquício da minha existência neste mundo se fosse.

Desaparecer, deixar de existir. Sim, eu pedi isso enquanto dormia, inconscientemente. Aos poucos eu senti que meu desejo estava se realizando.

Mas então uma voz me parou no escuro. Era uma voz de dentro, a voz da minha consciência. Tão clara como nunca esteve. Mas o que ela me falou, não foi fruto de uma reflexão minha. Alguém estava falando através dela.

- Todos estão sujeitos a desaparecerem enquanto dormem - ela disse. - mas as pessoas não desaparecem porque o amor e as lembranças que os outros têm por elas existem e são reais, e sustentam a existência delas. Isso as traz de volta do sono do esquecimento.

Eu fiquei em silêncio, preso entre a realidade e o sonho, ouvindo com atenção.

- Enquanto houver pessoas que lhe amem neste mundo, você jamais deixará de existir. Não se pode apagar uma existência que foi consolidada. Para consolidar uma existência, basta que alguém a ame.

E então eu acordei, e estava no meu quarto. Faltavam quinze pras dez.

Há coisas que por mais que tentemos, jamais conseguiremos explicar...



L.M.

quarta-feira, 30 de março de 2011

Capítulo VII – Amélia Mimieux e a Borboleta Amarela


- Tem um terreno baldio do lado de casa, não acha isso perigoso? – perguntou ela, fria. Já não era a mesma mulher de antes. Agora, com quase trinta anos, era preocupada e um tanto amargurada, tinha o cenho sempre franzido e os olhos azuis-água sempre marejados. Mas o carinho para com os filhos era o mesmo. Ver Amélia sorrindo, Frederico jogando bola no quintal, isso era sempre muito prazeroso, e fazer isso ouvindo Djavan enquanto a lavadora batia a roupa e ela lia um livro era melhor ainda. Melhor ainda quando o marido estava viajando.


Dimitri estava se comportando como um verdadeiro idiota ultimamente. Não era o mesmo desde que deixaram a França, e já estavam prestes a se mudar de novo. O interior do Paraná não era o que ele queria.


- Não me preocupa nem um pouco. – fez ele.


- Bandidos podem se esconder lá – respondeu ela, baixando os olhos para o livro outra vez.


- Você parece muito pouco preocupada também, lendo esse livro aí. – o carro fez a curva. – deveria se preocupar com os meninos e o português deles. Eles estão há um ano aqui e não conseguem aprender nada na escola porque você fala com eles em francês em casa. Isso os confunde, Amelie.


- Não posso deixar a língua materna deles morrer. – disse, despreocupada enquanto virava a página do livro. – esse porco é um safado!


- O que?! – espantou-se o marido, quase perdendo a direção – Isso são modos, Amelie?!


Ela gargalhou.


- Não queria que eu falasse português fluentemente? Estou treinando! – riu outra vez.


- Você é louca, está ficando louca. – o sinal fechou. Silêncio por um tempo. – que livro está lendo?


- A Revolução dos Bichos – respondeu, antes sequer do marido terminar a pergunta direito. Ele grunhiu.


- Não adianta xingar os personagens – fez ele – é até covardia, eles não podem se defender.


- Lhe digo o mesmo.


- O que está querendo dizer?! – perguntou, desconfiado.


- Não adianta me xingar, eu nem posso me defender.


A briga sempre começa assim. Chegaram em casa se agredindo verbalmente. Amélia pintava em seu quartinho enquanto Frederico caçava insetos na lama lá fora. Eram crianças ainda, pouco mais velhas, cinco anos haviam se passado desde a vinda da França.


- Esses dois nunca se cansam – Amélia suspirou e voltou a pintar. Uma borboleta amarela enorme, tão viva quanto as verdadeiras, brincava na tela tomando forma e cor. Que linda, pensou, admirando a obra. Ficaria pendurado na parede da sala. Aquela borboleta estava frequentemente invadindo seus doces sonhos noturnos, a maioria deles era sobre uma revoada delas, várias borboletas amarelas migrando para acasalar, cruzando a frente do carro unidas numa nuvem.


No sonho ela estava viajando, ela, o irmão e os pais, no velho carro quadrado que usavam na França, aquele carro com o interior claro e de teto baixo que fazia Dimitri Mimieux parecer um gigante recurvado sobre o volante. Era sempre assim, eles nunca chegavam ao destino, o sonho inteiro era a viagem e paisagens, infinitas, sem fim, montanhas nevadas distantes, florestas verdes geladas, sorrisos e borboletas.


Amélia era uma criança prodígio, com seis anos foi classificada superdotada, falava fluentemente e pintava divinamente. Seu único defeito era ser mimada. Mimada até demais. Ela e Frederico viviam em pé de guerra, brigando por tudo, eventualmente pelo fato de ela ter o péssimo costume de mexer nas coisas dele, e ele desde aquela idade sempre fora muito possessivo.


- Já estão prontos?! – gritou o pai. – hora de ir pra escola!


O caminho para o colégio era tão arborizado, tão arejado. As árvores passavam voando pela janela do carro numa velocidade razoável. Por mais estressado que o pai estivesse ele nunca acelerava, ele sempre ia numa velocidade constante e agradável, que fazia o vento gelado da serra mais gostoso, mais delicioso, saboroso. Era tão bom ir para a aula, voltar então era uma maravilha, a rua principal da cidade era um prato cheio para os olhos, pelo menos pra quem gostava da natureza, do cheiro das folhas novas, do fim do inverno e da chegada da primavera.


Aquela cidade inominável no interior do estado do Paraná ficava no alto, de modo que todo inverno sempre tinha aquela ameaça constante de neve, havia um prelúdio da chegada, mas ela própria dita nunca se consumava. Agora era o fim da estação, as flores já começavam a brotar nos ipês e nas cerejeiras, tulipas delicadas nos canteiros e margaridas salpicando as varandas aqui e ali despontavam.


- Vamos para o Amapá assim que vocês saírem de férias, meninos – disse o pai, cortando o uivo do vento que entrava pelas janelas abertas do velho Fiat vermelho.


Frederico estava com a cara metida num livro. Amélia parecia ter sido a única a prestar atenção no que o pai havia dito.


- Mas porque papai? – ela se lembrava muito pouco da última mudança, era uma garotinha de três anos naquele período – parece que foi ontem que chegamos da França!


O pai lhe respondeu, parecia muito calmo na verdade. Quando eles brigavam, ele sempre parecia muito calmo depois. Nunca era verdade, sua careca vermelha e a veia enorme saltada na testa provavam o contrário.


- A vida é assim mesmo, minha princesa – disse, olhando para um lado e depois para o outro antes de atravessar o cruzamento. – nós vivemos em constante mudança.


Frederico continuou lendo o livro. Harry Potter e a Câmara Secreta. Os olhos de Amélia iam do irmão avulso às costas do pai vestidas no suéter cinza.


- Onde fica esse tal de Amapá? – ela passou pro banco da frente, se contorcendo feito uma lagartixa.


- Não é uma pessoa, é um estado, meu bem. – ele parecia ignorar o fato de que era perigoso uma criança ficar se movimentando dentro de um carro em movimento.


- Onde fica? – tornou a perguntar, largando-se no banco com um baque surdo.


- Longe, na outra ponta do país!


Mantiveram silêncio então. Chegaram à escola, se despediram do pai com beijinhos estalados na sua barba sempre por fazer e entraram. Tudo era sempre muito chato quando se estava na terceira série. Conversar com os amigos sempre fora a única diversão. A professora não ligava muito pro que Amélia fazia ou deixava de fazer, havia desistido de tentar convencê-la a estudar ou fazer alguma coisa dentro de sala, a menina tinha resposta para tudo na ponta da língua e sabia usar psicologia reversa como nenhum adulto conseguia. Ela os envolvia numa armadilha como uma aranha soturna e os pegava na teia, a danada.


Não tinha porque discutir com Amélia Mimieux, a não ser que quisesse perder toda a compostura e autoridade diante de uma turma de crianças com apenas oito anos de idade. A escola ficava um pouco afastada da cidade, no meio de um campo aberto, construída no sopé de um morro, havia araucárias ao redor, espalhadas e bem separadas aqui e ali. Diante do prédio havia a estrada e depois da estrada um profundo vale se abria a perder de vista, e as suas cores no pôr-do-sol eram as mais lindas de se ver, pelo menos naquela região.


Tudo se tingia de vermelho, amarelo e laranja, as árvores, as pedras, as nuvens. Havia um lago no meio dele, ou um arroio como aquele povo estranho chamava. Amélia nunca se acostumaria ao português daquele lugar, não era o português do seu pai.


- Não está vendo? – perguntou para a amiga.


- Vendo o quê?


Ela apontou.


- Onde? – a amiga procurou por toda a paisagem, mas não encontrou o que Amélia queria que ela visse.


- Aquela borboleta amarela, voando ali na beira da estrada! – era hora do intervalo, e as crianças a esta hora costumavam brincar numa área aberta do prédio que ficava logo à frente, pouco afastada da entrada. Era como um pátio, mas possuía uma caixa de areia e brinquedos. Escorregadores, balanços e três casas de madeira onde as meninas fingiam serem princesas em seus castelos. Havia também gangorras e um laguinho com peixes e uma estátua de anjo bem no meio. O lugar era cercado por um gradeado alto cuja base era um pequeno muro de meio metro feito de cimento, tijolos e argamassa. Nele brotavam gramíneas e trepadeiras que se enroscavam nas grades. Era muito fácil para a magricela Amélia atravessar as falhas entre as barras. Foi o que ela fez.


- Amélia, aonde você vai?! – perguntou a garotinha gordinha, correndo até o gradeado. – não pode sair! Volta! Você sabe o que acontece com quem sai!


- Eu preciso ver aquela borboleta! – respondeu, voltando para a amiga. – eu a pintei hoje de manhã! Ela deve ter escapado da minha tela! Ela estava na tela e agora está voando ali do outro lado da estrada! – voltou a cabeça para lá, para o outro lado, em direção ao vale profundo, mas não eram os morros ou a floresta que ela via, ela via a borboleta do outro lado da estrada. Sua tão amada borboleta pintada com tanto carinho na tela estava viva e voava logo ali. E como ela era grandiosa! Magistral! Havia certamente um grande espaço entre a propriedade da escola e a estrada. Era uma extensão verde de gramado molhado que se estendia até a beira do asfalto com arbustos crescendo aqui e ali. Ela era pequena, seria fácil se esconder atrás de um, depois de outro, até chegar à beira da rodovia e atravessar para encontrar a borboleta, sua tão amada borboleta!


O dia era gelado como qualquer outro dia de começo de primavera. E as moitas já estavam salpicadas de florezinhas vermelhas, amarelas e alaranjadas. Outras borboletas e insetos voavam ali perto, como libélulas ou joaninhas, mas nenhum deles se comparava à sua exuberante borboleta amarela, que alçava voo de um lado para o outro, fazendo círculos perfeitos no ar.


Pousava nas folhas compridas do capim e depois voltando ao ar, mas nunca se afastava daquele lugar, como se a chamar Amélia para si, seduzi-la. Sempre no mesmo lugar, como um humano andando em círculos a pensar, ou uma criança a brincar. Sim, era uma criança a brincar. Suas asas e seus saltinhos de uma folha a outra pareciam divertidíssimos! Em breve Amélia estaria com ela. Atravessou a estrada correndo. Havia um animal amassado no asfalto no seu caminho. Já era só carcaça, havia grudado no chão há muitos dias. E lá estava a borboleta, amarela, radiante, como duas fatias de pão unidas por um barbante delicado e encantando por alguma magia antiga que as fazia baterem como asas.


Aquele momento era perfeito, nada podia estragá-lo, nada, aquela era a sua borboleta, ela havia pintado, ela havia dado a vida àquele ser. Esticou o dedo e ela pousou, gentil e delicada. Amélia soltou um risinho baixo e se inclinou para beijá-la.


- AMÉLIA! – um berro estridente cortou o silêncio eloquente do campo verdejante. O momento foi destruído. A professora gritava desesperada do portão da escola, há alguns metros atrás.


De repente o chão não havia. Talvez o susto a tivesse arrastado para a beira do precipício, talvez tivesse se aproximado demais do limite entre a terra e o abismo para ficar perto de sua amada borboleta. Talvez tivesse sido arrastada por alguma força misteriosa para baixo, para dentro do vale. Ela nunca soube explicar como caíra e rolara à ribanceira feito uma fruta madura que despencara do galho. E por mais que tentasse explicar, não conseguia, porque em um dado minuto ela estava ali, com o pé na terra, no capim, há alguns centímetros do meio-fio, e de repente ao virar-se em direção ao berro da mulher, já estava descendo. Descendo com tudo. Aquilo lhe rendeu um pulso quebrado e algumas escoriações bobas nas pernas e no rosto.


Chorando suas dores, ela gemia pelos arranhões e pelos baques, mas também gemia pelas pedras geladas que lhe agrediam a pele. Pedrinhas de lago, acinzentadas, pretas, marronzinhas. Ela havia descido até o vale enfim. E lá em cima, não muito longe dela, a sua amada borboleta amarela voava tranquila em círculos, como se velando sua queda inoportuna.


- AMÉLIA! – duas professoras, a diretora, o porteiro e mais dois homens desconhecidos surgiram lá em cima. – NÃO SE MEXA! NÓS JÁ ESTAMOS DESCENDO!


Amélia não se mexeu. Quer dizer, pelo menos não o corpo, mas sua cabeça virou para o lado, para o espaço entre as árvores que mostrava uma trilha de seixos, um caminho para uma clareira iluminada pela pouca luz do dia nublado. Do outro lado da clareira havia uma casa, um casebre de alvenaria, teto pontudo, janelas marrons envernizadas e gradeadas, portões gradeados de ferro e colunas de madeira sustentando o teto do pátio que ostentava seis cadeiras de balanço enroladas em macarrão roxo e azul.


Como ela se lembrava desses detalhes com tanta nitidez? Se lembrava até do poste ao lado da casa! Se lembrava do modo como o capim crescia nas laterais e de como um sapo coaxou ali perto, tão alto que a assustou. E quando deu por si estava sendo içada pelos braços de um alguém estranho. Não havia mais trilha nem clareira nem casa. Apenas a floresta densa, fechada, abafada e fria. Gelada.


”Vai ficar tudo bem neném, vai ficar tudo bem” foram as palavras do moço gentil que a resgatou. Aquilo mexeu profundamente com seus pais. A escola foi duramente responsabilizada por isso. Amélia ficou de castigo por longos períodos imemoráveis, e houve um tempo em que passar o intervalo entre as aulas na biblioteca nem era tão ruim assim. Mas a imagem da casinha amarela não saiu da sua cabeça durante um bom tempo. Que lugar agradável de se viver! Ali, no meio da floresta, longe de tudo e de todos, tranquilidade e calmaria. Aos poucos o tempo lhe roubou a memória, mas agora tudo parecia tão claro como nunca fora. Uma luz se acendeu em seu cerebelo numa noite escura e friorenta.


- Eu também. – fez ela, olhando para o rosto atônito do irmão, a observar o mundo estranho pela janela.



terça-feira, 29 de março de 2011

O Coração



Era uma vez um peito, um peito guardado por fileiras de costelas brancas e brilhantes, e elas eram cobertas de sangrenta carne, que era protegida por delicada pele.

Dentro do peito havia um coração. Um coração pulsante, que bombeava o sangue com fervor, dia após dia, mantendo o corpo vivo e cuidando do equilíbrio daquele pequeno mundo que havia ao seu redor.

Mas um dia, o coração se apaixonou. E o amor o fez sofrer muito por isso. A cada nova paixão, o coração se sentia apertado por uma mão invisível, transpassado por flechas e adagas furiosas, batia com mais força, nervoso, ansioso, bombeando o sangue e os sentimentos com força, prejudicando a ordem das coisas naquele pequeno mundo onde ele era deus.

Isso acontecia vez ou outra, paixões avassaladoras que causavam grandes tremores de terra dentro do peito, às vezes nem as costelas aguentavam tantos terremotos, o coração era o culpado, sempre era o culpado daquele sofrimento todo. E os outros órgãos começaram a ficar aborrecidos com ele, muito aborrecidos, principalmente o cérebro, que ficava num andar acima, sem no coração conseguir mandar.

E então percebeu-se que a cada novo amor, a cada novo tremor de terra seguido da decepção dolorosa, as bordas vermelhas do coração estavam começando a ficar marrons.

Poucos ligaram para aquilo, poucos deram a devida atenção àquele fato.

Todas as vezes em que o coração se apaixonou, ele pensou "dessa vez será diferente!", sempre otimista, nunca desistia de encontrar o seu outro par, o outro coração que o completaria. Mas se querem mesmo saber de uma coisa, nunca foi diferente, era tudo sempre igual, a insegurança, depois a dor, depois o sofrimento e por último o tremor de terra da decepção. Ele nunca, nunca aprendia, sempre se iludia, persistia. Até que houve um tempo em que ele começou a conversar com o cérebro, e aos poucos ele estava começando a aceitar a ideia de que o par que ele tanto procurava, não existia. Aquele coração especial que o completaria não pertencia a este mundo, a nenhum outro mundo. Porque ele simplesmente não existia. Não haveria um "alguém só para mim". Nunca. E não adiantava esperar, o outro coração que o completaria nunca apareceria.

Este foi o começo do fim.

As bordas marrons avançaram, e percebeu-se que aquilo era pedra. O coração aos poucos estava se tornando um enorme pedregulho no meio do peito, e se ele se tornasse mesmo um mineral, não haveria outro órgão para bombear sangue e sentimentos, o que significaria a morte daquele mundo. Conforme a faixa marrom avançava para o centro, aos poucos, com o passar dos anos, as extremidades foram tornando-se cristalinas e cintilantes, quase transparentes, e quando a luz as atravessava, se decompunha nas cores do arco-íris, num evento belíssimo. Mas aquilo significava mais do que beleza, significava a morte se aproximando.

E então, após muitas eras, houve um período de muito frio interno. Um frio insuportável havia tomado conta do peito, havia muita neve ali dentro, e a primavera nunca, nunca chegava. Eram os efeitos do começo do fim. O coração agora possuía algo minúsculo, semelhante a um botão vermelho, um núcleo, um olhinho bem no centro que ainda batia, isso mantinha os outros órgãos vivos, as outras criaturas respirando, era o que restava da grande massa muscular que batia com vontade no lugar do enorme diamante que havia tomado o seu lugar no centro do peito. Mas ninguém parecia se importar com isso! O resto do corpo sequer se lembrava da importância do coração, haviam se passado tantos anos, mas tantos anos, que os órgãos agora nem lembravam que quem os mantinha vivos e funcionando, era o coração, ou pelo menos o que havia restado dele, e por isso estavam pouco ligando para o frio que dominava o peito num inverno eterno.

Mas então houve um período que as flores começaram a aparecer, algo que muito foi comemorado. O coração (ou o núcleo dele) estivera se comportando de forma estranha havia muito tempo, batendo com mais força, crescendo, dobrando de tamanho, forçando a rocha ao seu redor, fazendo rachar as camadas de pedra preciosa que antes era sua parte maior.

Os outros órgãos trataram de descobrir o que estava acontecendo, e como não poderiam saber de outra maneira, perguntaram aos olhos, as janelas da alma. Aqueles únicos indivíduos que possuíam contatos com outros mundos.

Os olhos assentiram e confirmaram as suspeitas. Um outro coração estava mandando um sinal fraco, distante, mas ainda assim, forte o suficiente para fazer aquele pequeno pedacinho vermelho do núcleo do diamante se debater furiosamente no peito.

Mas algo estava muito errado. Os olhos são órgãos sonhadores e passivos, que adoram se iludir, de modo a enxergarem somente o que desejam, só veem o que querem. E o sinal do outro coração precisava passar por eles para atingir o núcleo do diamante. Até alcançar o centro do peito, os sinais já foram tão modificados que não se assemelham mais nem um pouquinho de nada com o que eram antes de serem captados por aquelas duas criaturas avoadas e românticas, de modo que toda a culpa da ilusão fantasiada pelo coração advinha deles. E ninguém nunca havia se tocado disso. Não até aquele momento, por isso exigiu-se confirmação e certeza dos dois, que afirmaram com muito fervor ser tudo verdade: um outro coração estava mandando sinal.

Como era de se esperar, os dois estavam redondamente enganados (devido ao seu formato globular, era comum que eles estivessem redondamente qualquer coisa), e os sinais foram mais uma vez mal interpretados por eles, chegando deturpados ao peito, de modo que o coração recebeu esperanças falsas de uma última luz advinda do fim do túnel.

E então houve o maior de todos os terremotos.

Nada no corpo ficou de pé depois daquilo. Os olhos ficaram cansadas, a boca ficou seca, o estômago faliu, e aos poucos o corpo começou a secar e a definhar. Cada tremor de terra, cada coração partido, fazia com que o peito estremecesse de norte a sul, destruindo tudo o que havia no caminho. A transformação então foi completada. Não havia mais núcleo, não havia mais coração, somente uma grande, transparente, brilhante e gelada rocha sem vida. Tão bela, tão triste, estagnada no meio do peito. Não havia outra saída.

Todo o sentimento e toda a tristeza estavam tão comprimidos dentro daquela pedra que não houve escapatória, o que antes era um coração explodiu, e levou todo o peito junto consigo, espalhando-se no vazio da imensidão do espaço escuro. Estilhaços minúsculos de paixão e sonhos congelados pela ilusão se espalharam pelo universo, antes um mero espaço composto de nada, agora aos poucos sendo povoado na velocidade da luz pelos restos de um coração apaixonado.

E então, cada pequeno pedacinho cintilante do coração tornou-se uma estrela no céu que nós vemos todas as noites. Assim nasceram as constelações.

Ninguém nunca soube a quem pertencia aquele coração que explodiu e iluminou o céu com seus restos, trazendo beleza e segurança durante as noites para toda a eternidade...





Por Antonio Fernandes, em 30 de Março de 2011.

domingo, 27 de março de 2011

A Canção da Débil Mental

Com muito esforço, consegui trazer até vocês o depoimento de uma garota (anônima por opção - exigência na verdade) que está perdendo os cabelos, desesperada, louca de amores por um colega de classe que sequer nota a sua existência. Embora não possua melodia ainda, achei a música divertídissima, engraçada, e dei boas risadas dela (a anônima não gostou nada, nada da minha reação), daria um single maravilhoso, e com essa letra faria sucesso instantâneo nas rádios brasileiras, de fato. Decidi então convencê-la a ceder a letra de sua futura música para as páginas de The Fatcat House, afinal de contas, quem nunca passou por uma situação dessas? Com vocês, as palavras da anônima!



Doutor me tranque no hospício


Ele não sai da minha cabeça


Doutor, eu reconheço


Isso é doença


Doutor, eu não aguento


Faça isso parar


Doutor isso é o imploro


De uma garota demente mental


À beira de um derrame


Precisando de um tranquilizante radical


Meu coração está em frangalhos


Ansiedade é meu sobrenome


Porque ele não pode ser meu homem?!



Doutor, onde está você?


Nessa minha hora de desespero?


Minha vida já virou um pesadelo


Novela mexicana, ou talvez peruana


Onde está o medicamento?!


Eu não aguento!



Doutor isso é o imploro


De uma garota débil mental


Que precisa de um homem tal


Que me ame, que me ame!


Por Deus, vou ter um derrame!


Necessitando de um tranquilizante


Pra conter essa fúria emocionante


Que emana de mim, vinda de um universo distante!


Doutor me dê um tranquilizante!



Doutor me tranque no hospício


Antes que eu cometa suicídio


Eu sei que são os ossos do seu ofício


Mas é minha vez de falar


Você sabe o que é amar?!


Não me venha com“isso não é amor, é paixão”!


Nem você sabe o que é isso, então!


Não, eu não sinto tesão



Doutor, eu preciso de amor


Só o que eu quero é o amor


O amor de homem tal


Que aos outros olhos parece tão banal


Mas para esse coração é essencial!



Doutor isso é o imploro


De uma garota demente mental


À beira de um derrame


Precisando de um tranquilizante radical


Meu coração está em frangalhos


Ansiedade é meu sobrenome


Porque ele não pode ser meu homem?!



Deus, onde está você?!


Que não traz pra mim meu bem querer?


Eu perdi meu coração


No fogo dessa paixão


Deus, onde está você?!


Pare de se esconder


No meio dessa confusão


E tire esse homem


Do meu coração!


Capítulo VI – Frederico Mimieux e o Buraco na Sebe


França, 1997.


- A casa da vovó é bem grande, meninos, vocês vão adorar! – disse a doce voz da mulher sentada no banco do passageiro. Aquela voz sempre era tão sonora ao ouvido das crianças! Soava como uma cascata de mel escorrendo sobre lírios brancos perfumados. Em pensar que a mãe deles já fora cantora há tanto tempo atrás, pulando as janelas da casa dos pais em alguma cidadezinha do interior da França para ir cantar nos clubes noturnos! E quanto sucesso Amelie fazia, a cantora mascarada que nunca revelava sua identidade! Ela fora um mistério e tanto para os jovens e seus hormônios aflorados naquele tempo. Agora ela era só mais uma moça envelhecida de cabelos e seios fartos e de poucos luxos. Mesmo assim ainda tinha os trejeitos elegantes de duquesa daqueles tempos. Aquilo encantava o casal de crianças, frutos de seu ventre, nascidos das fugas noturnas pela janela, eles a enxergavam como muito mais do que uma rainha, uma verdadeira deusa apoteótica e inexorável. Que ser maravilhoso sua mãe era!

- Lá tem jardim? – perguntou a pequena Amélia que era mais vestido do que menina. Sua roupinha cheia de laços e babados mais lembrava uma barraca, e ela tinha a leve impressão de que poderia recolher sua cabecinha de cabelos negros e escorridos para dentro de seu casco de pano exatamente como as tartarugas faziam se caso ficasse envergonhada ou se sentisse ameaçada. Poderia morar dentro daquele vestido se quisesse!

- Tem sim meu amor, tem um jardim enorme, cheio de flores pra você fotografar e com uma grama verdinha onde você pode deitar e rolar sem se sujar! – riu a voz de sino da mãe. – eu passava tardes inteiras do mês de maio escondida embaixo dos arbustos e das sebes, caçando sapos e pequenos roedores, eu adorava!

- SAPOS! – Frederico finalmente se manifestou. Estivera preso, hipnotizado pelo campo que passava voando pela janela do carro, admirando as vacas e as casas do infinito verde que era o campo do interior da França. – podemos caçar sapos se quisermos, mamãe?

- Claro que podem! – riu outra vez. – desde que não vão muito longe, a propriedade é enorme! – esticou sua mãozinha gorda de unhas bem feitas para trás e fez um gesto, pedindo que o filho se aproximasse – vem cá meu bem, meu anjo, minha delícia!

Frederico deu uma risadinha e se atracou nas costas do banco do carro, abraçando a mãe pelo pescoço.

- Ah! Meu Deus! Nossa Senhora nos proteja! – fez ela, teatral. – olhe querido! Olhe Dimitri! Um sapo gigante! Ele está me atacando Dimitri! O pai que se mantivera calado esse tempo todo, olhos fixos na estrada, finalmente se manifestou.

- Jogue-o para fora da janela, Amelie! Jogue! – gargalhou. – ele pode ser venenoso!

- Sou eu mamãe, não seja boba! – disse a vozinha fina de Frederico, com um sorriso enorme de orelha a orelha, seus dentinhos de bebê ainda brancos e separadinhos, sua boquinha cor de rosa brilhante e úmida, era um pequeno querubim.

- Ora, seu moleque! Você nos enganou, agora vai ter que pagar! – fez-se um silêncio mortal, ela puxou o filho para o colo, no banco da frente. – COM MUITOS BEIJINHOS!

Fred gritou e começou a se contorcer enquanto a mãe lhe salpicava de estalos agudos com os lábios.

- EI, EI! EU POSSO SER UM SAPO MALVADO TAMBÉM, ME BEIJEM! – Amélia pôs-se de pé no banco de trás do carro, tinha apenas três anos, mas se comportava como se tivesse cinco, agarrou o cabelo da mãe com sua mão de boneca. O pai parou o carro, pegou-a e colocou no colo.

- Pronto, minha querida, vamos dirigir juntos! – fez ele, apoiando as mãozinhas de Amélia no volante. A garotinha deu um gritinho de sabiá e bateu palmas de felicidade. Assim se fez o caminho até a cidadezinha onde a mãe de Amelie morava, seu pai havia falecido há algum tempo.

A casa era simplesmente um palacete branco perolado repleto de enormes janelas de vidraça com um brilho azul celeste maravilhoso, talvez por refletir a cor do céu francês naquele verão. Era exatamente como mamãe havia dito, pensaram as crianças, um pedacinho do paraíso escondido, uma parte do país das maravilhas onde Alice havia se perdido por imprudência. A casa principal era cercada por uma sebe alta de dois metros de altura, com folhas de um verde escuro brilhante e lustroso. Do lado de fora da sebe havia também uma cerquinha branca muito bem pintada onde rosas cresciam se entrelaçando por entre a madeira. Flores grandes gordas e brilhantes irradiavam seu brilho divino aqui e ali entre os arbustos de morango, framboesa, amora e cereja silvestre. Que lindo! Que belo lugar era aquele!

No meio do jardim havia uma mesinha branca com um enorme guarda sol vermelho e branco enfiado bem no meio, ao redor havia cadeiras de metal centenárias feitas em arabescos e curvas sinuosas e elegantes, seus pés eram patas de leões. Atrás do palacete de teto azul composto de várias e pequenas torres amontoadas aqui e ali sobre a base do casarão havia um pequeno bosque de carvalhos frondosos onde coelhos espertos brincavam. Mais pra longe ficava a baia e mais adiante o celeiro. A plantação de uvas ia campo adentro perdendo-se de vista enquanto o pasto era pequeno, mas consideravelmente grande. As vacas davam leite o ano inteiro!

- MAMÃE! – gritou Amelie, abrindo a porta do carro com violência, saltando para a grama e correndo em direção à velha senhora rechonchuda recurvada, de cabelos branco-acinzentados salpicados de mechas pretas. Era uma vovó de conto de fadas! – venham crianças! Desçam! Venham conhecer a vovó!

Tímidos, eles desceram um após o outro. Sendo que Amélia foi preciso carregar no colo, de repente sentiu-se apavorada sem quê nem por quê. Talvez fosse um tanto xenofóbica, medo de estranhos. Mas isso era comum em crianças da idade dela. Ela não deveria nem falar com tanta coerência! Era muito adulta pra idade dela.

Frederico não precisou de ajuda, abriu a porta de trás do carro e correu como um foguete de macacão listrado e suéter azul até as pernas da avó, abraçando-as.

- Oh, mon petit prince! – disse a velhota, agachando-se e beijando-o com carinho enquanto passava a mão em seus cabelos escuros que à luz do sol da manhã tinham uma certa tonalidade castanho-dourada. Ela tinha razão, ele era um príncipe! Naquela época, o único da família que falava português era o pai. Brasileiro, havia vindo de muito longe e por um acaso caiu justamente ali, naquela cidade secular onde conheceu a cantora mascarada por quem se apaixonou perdidamente.

Eles entraram, sentaram-se, comeram bolo, tomaram leite e chá, reviraram álbuns velhos de foto e abriram presentes. Cada um havia trazido algo de diferente para a vovó Marie. Ela era uma senhora de idade que adorava ser mimada, amava receber presentes e gostava de dizer o quanto a vida era boa ali. Seus outro quatro filhos, os irmãos de Amelie, todos homens, a esta altura estavam na cidade grande, mas quando não tinham contas a pagar ou documentos a assinar, estavam na lavoura ou no pasto cuidando da plantação e dos animais, eram homens sérios e respeitáveis, de poucos amigos, mas muito carinhosos. Amelie não os via há anos, e não seria daquela vez que iria vê-los. Moravam em casas próximas, mas separadas, e vinham para a fazenda todo dia de manhã.

- Mamãe, queremos brincar! – fez Amélia, puxando a barra do vestido da mãe.

- Vamos para o jardim, meus amores, assim esses danados não me quebram as porcelanas! – riu a velhota, levantando-se para abrir a janela-porta que dava para a varanda branca bem iluminada de onde descia à escada direta para o gramado. As crianças passaram na frente e correram como pequenos gatinhos felpudos para caírem na grama e rolarem aos risos. A vovó Marie deu uma risada gostosa e indicou à filha e ao genro a mesinha coberta pelo guarda-sol.

Assim se passaram as horas. O meio do dia chegou e uma farta mesa foi servida por uma empregada risonha chamada Veronica, era uma mulher baixinha, branca, de olhos muito grandes e coque no alto da cabeça, era búlgara ou bávara, algo do gênero. As crianças sequer olharam para a mesa cheia de comida, não estavam com fome, estavam rastejando embaixo das moitas e dos arbustos, sujando suas roupas novas com vontade, brincando na terra e colhendo pedrinhas, frutos e folhas de formatos estranhos. Brincaram de pique esconde e pega-pega, depois fingiram ser príncipes de um reino distante e aquele era seu reino. Depois Amélia fingiu ser Alice perdida no país das maravilhas e Frederico, o gato risonho, deitado de bruços em cima de um banco coberto de folhas secas dos carvalhos aos fundos. Eles estavam cada vez mais longe da mesa dos adultos, desbravando os jardins infinitos da casa da avó. Em uma semana estariam no Brasil para morar, e nunca mais voltariam ali. Pelo menos não tão cedo.

- Preciso ir ao banheiro – sussurrou Amélia para si mesma. Mas Frederico ouviu, e ficou olhando para a menina ficar vermelha e sair correndo para perturbar a paz da mãe. Ele ficou sozinho por muito tempo, parado de pé ao lado da sebe, no canto mais distante do jardim, onde as coisas eram meio sombrias e o cheiro de terra era mais forte, talvez pela proximidade da floresta de carvalhos. Ali a sua frente havia um lampião e um banco de pedra, mais ao longe havia uma pequena construção sustentando um teto pontiagudo azul, ele se esquecera o nome daquilo no momento, mas já vira bandas de trompete e violino tocando ali dentro em casamentos nos filmes que assistia. As sombras das árvores ali eram mais densas e o vento mais forte, o aroma das flores era gelado, para uma criança isso dava arrepios, mas nele causava uma estranha sensação de descobrimento e aventura. Decidiu explorar a área sem a irmã, estava demorando demais.

Andou por entre os arbustos, sozinho, encontrou objetos largados no chão e coisas estranhas, como um pingente dourado em forma de mão com um olho no centro. Guardou aquilo no bolso, adorava coisas estranhas, e aquilo realmente era estranho, tinha todo um mistério envolvendo aquilo, e quando Amélia voltasse eles poderiam fingir que aquilo era um amuleto mágico que servia de porta para um outro mundo, olha que maravilha! E em pensar que sua imaginação estivera quase acabando há pouco tempo! Logo eles estariam entediados, porque a tarde ia longe e a conversa dos pais com a avó também, daqui há pouco seria hora de explorar o palacete e vovó não iria gostar muito da ideia daquelas mãos sujas nas suas paredes incrivelmente brancas.

Então algo se moveu na sebe, atrás dele. Ele caiu sentado de susto e virou-se para ver do que se tratava.

Havia uma passagem ali, uma passagem que não estava ali antes. A sebe parecia ter rachado no meio, abrindo um arco perfeito para a floresta de carvalhos. Dali vinha um vento frio, gelado, causando calafrios no pequeno Frederico, porém seus olhos estavam fixos ali, fixos naquele uivo de vento, naquelas folhas que vinham voando numa corrente de ar fortíssima que brincava com suas mechas escuras como a água do mar brinca com as algas marinhas.

Ele deu dois passos em direção à passagem, mas recuou por causa de um uivo mais forte e assustador. Estava com medo, e aquele medo só o instigava mais, lhe dava vontades, lhe causava um formigamento e um frio no estômago que nunca havia sentido. Era adrenalina. Era vontade de descobrir, de atravessar, de encarar o desconhecido, uma criança curiosa explorando aquele mundão vasto! Ele se sentiu um cavaleiro ao atravessar a passagem com coragem e chegar do outro lado vivo, dentro da floresta de carvalhos e suas raízes grossas protuberantes da terra, escapando do chão como serpentes duras e escuras retorcidas na superfície e paradas no tempo feito fósseis ancestrais. O vento frio só aumentava mais, logo ele iria espirrar, precisava de um casaco! Em pensar que o dia estivera tão quente mais cedo, tão quente que foi capaz de fazer seu cabelinho grudar na testinha branca suada!

Uma vaca mugiu longe e o vento contrário trouxe a voz de sua mãe, a gargalhada gostosa dela. Ele olhou para trás, para a passagem, ela ainda estava lá. Por um momento as vozes de seus conhecidos lhe passaram segurança e força para seguir adiante, coragem, eles estariam logo ali atrás caso alguma coisa acontecesse, e viriam correndo, não o deixariam. Foi com essa iniciativa que Frederico iniciou sua longa caminhada, topando com patos selvagens, uma família de esquilos, pássaros de todos os tipos e bichos que ele nunca havia visto nem em livros, mas que eram fofos e curiosíssimos. Sua respiração era profunda, seus olhinhos infantis, arregalados de curiosidade, e seu coração batendo à mil. Ele sorria a cada nova descoberta.

E então o vento parou, a floresta ficou estranha de repente. Parecia não haver sol nem animais ali perto. Nem insetos voando ou pássaros cantando. As árvores pareciam ter prendido a respiração. Mesmo assim ele continuou a caminhada, olhou para trás e viu ao longe a passagem da sebe de onde escapavam raios de sol dourados tremeluzentes, onde as árvores e os arbustos ainda se mexiam com a força dos ventos franceses. Que delícia de lugar era o sítio da vovó! Ele deu mais um passo para frente, e pisou em pedras! Pedrinhas de lago! Que ótimo! Havia um lago escondido ali!

Abaixou-se então e pegou aquelas que mais lhe agradavam em aparência. Eram todas pretas ou cinzas, de diferentes formatos e tamanhos, seixo liso e gelado. Guardou-as no bolso e voltou a andar. As árvores estavam se abrindo e o sol voltara a brilhar. Ora, não havia um lago, mas uma clareira! Uma clareira cinza e seca! Teria o lago secado?

Olhou ao redor para se certificar de que estava seguro e deu mais alguns passos para fora da floresta, a clareira era bem arejada e geladinha, o lugar perfeito para um piquenique saboroso com a família. Se lembraria de avisar a mamãe e ao papai para conhecerem aquele lugar maravilhoso!

Mas havia algo estranho ali. Ele não estava sozinho. Havia um sapo, um grande sapo verde de olhos amarelos e pupilas horizontais, o encarando no meio do capim, sério, sua papada descendo e subindo num ritmo preguiçoso e asqueroso. Ele adorava aquilo. E como o sapo era grande! Onde estava a máquina fotográfica agora?

Do outro lado da clareira, após o capim e o sapo, havia uma casa, uma casa linda e amarela da cor do pão que saíra há algumas horas de dentro do forno da vovó, e havia também um poste com um braço de metal pendendo uma enorme lâmpada, que estava apagada. Logicamente, era dia.

A casinha era linda e amigável, borboletas amarelas voavam ao redor dela tornando-a mágica. Suas janelinhas marrons gradeadas e seu portão de ferro preto a tornava o lar perfeito para um solteiro. Seria o caseiro da vovó dono daquela casa? O sapo coaxou. E no meio daquele silêncio seu coaxar alto retumbou na clareira e ecoou numa cadeia de montanhas. Sim, ele estava nas montanhas! Olha o pico cinza que se erguia detrás da casa, após a floresta! As nuvens passavam brancas lá em cima, sérias demais.

Frederico Mimieux não se lembra exatamente como voltou à sebe, lembra-se de ter virado para trás e encontrado a passagem diante dele, lembra-se de ter voltado sua cabeça para a frente e não haver mais clareira, nem casa, nem sapo. Foi uma experiência estranha que ele repetiu e repetiu durante dias a fio aos pais, à avó e também à irmã. Os primeiros riam e o beijavam as faces, dizendo que ele havia imaginado tudo aquilo em uma das suas brincadeiras solitárias enquanto a pequena Amélia estava no banheiro. Mas ele tinha certeza do que tinha visto. Certeza absoluta.

- Eu já estive aqui. – disse Frederico ao pai e à irmã, observando aquele mundo estranho da janela da casa.


sábado, 26 de março de 2011

Hi, People!


Espero que estejam gostando de Yellow, a coisa só vai ficar mais estranha daqui pra frente, a cada capítulo haverá uma nova surpresa, um novo mistério a ser resolvido.

Leitores novos, (me refiro ao pessoal da faculdade! xD) não tenham vergonha de comentar (e muito menos preguiça!), é fácil e rápido, só escrevam o que acharam no final da postagem, digitem a captcha de confirmação e pronto, você pode até me xingar se quiser (mentira, não pode não!).

Yellow é uma série curta, o que quer dizer que logo em breve vocês estarão acompanhando Draconius Nefastus 2, que vai seguir a mesma estética do primeiro, narrado em primeira pessoa do singular em formato de depoimento/diário. Promete ser tão esquisito e assombroso quanto o primeiro!

Após Draconius Nefastus 2, The Fatcat House fechará com chave de ouro com uma história bipolar, violenta e ao mesmo tempo poética, mas este é um projeto secreto e vocês terão de acompanhar mais este blog para saber o que vem por aí.

Leitores novos, ao lado vocês podem observar uma barra com os banners que servem de links para as séries mais importantes de The Fatcat House, se quiserem diversão, é só clicar em qualquer um desses, garanto que não vão se arrepender! (Recomendo do fundo do meu coração, a trilogia The Big Machine, filha das minhas entranhas ;-; )

É isso gente, espero que estejam gostando dessa fase final de The Fatcat House, aproveitem bastante, ainda tem muita novidade vindo por aí!


XXXO


L.M.

quinta-feira, 24 de março de 2011

Capítulo V – Dimitri Mimieux e a Estrada de Cascalhos


- Porcaria de motor – chutou o para-choque do carro com força e coçou a barba rala.
Uma cigarra zumbia no meio daquele cerrado, perdida por entre as árvores baixas de galhos tortos e folhas pontiagudas. Chão duro, lagartos e insetos. Uma brisa quente levantou a poeira da estrada de terra batida, amarela, alaranjada, vermelha, uma nuvem quase o cegou.
Ele levantou a cara de dentro da parte elétrica do carro, estalou a coluna e encostou-se no para-choque que havia chutado, olhou ao redor.
- Merda – sibilou entredentes – merda, merda, merda!
Iria demorar séculos até um carro passar ali. Aquilo era um atalho que poucos conheciam. Ele precisaria estar na cidade vizinha às seis da tarde, essa era a hora prevista de chegada, estava perdendo horas preciosas de estrada. Laranjal do Jarí estava longe, muito longe agora. Maldito atalho, maldito.
A saída era admirar a paisagem e se perder nela, tentar abstrair até que uma condução passasse e lhe prestasse socorro. Os ônibus usualmente não tomavam aquele caminho, o caminho mais curto, sempre iam pelo caminho mais longo, mais árduo, mais trabalhoso, pelo simples prazer de maltratar os seus passageiros. Aquela estrada horrenda, tantas promessas de asfalto nunca cumpridas. Nada que os políticos corruptos deste estado falam se escreve.
- Não posso ficar parado aqui, não posso. – homem de quarenta anos impossível, pensava que tinha 20 ainda, Dimitri Mimieux nunca foi acomodado, nunca suportara ficar parado, trocara de profissão tantas vezes, se mudara de tantas cidades, para acabar parando ali, no estado do Amapá, longe de tudo e de todos. Até que não era um mal lugar, mas também não era dos melhores. Ao longo de sua vida já esteve em quase todos os estados brasileiros, exceto no Amazonas e no Acre, já fora oficial do exército por muitos anos até pedir a despensa, e depois disso foi delegado, também foi ator na adolescência e tentou alguma coisa na carreira política, sem muito sucesso. Sua vida foi uma sucessão de mudanças que não deram em nada. Agora ele estava casado havia 15 anos, tinha um casal de adolescentes e uma mulher entediada. Era isso o que ele queria?
O horizonte rugiu. Ele olhou pra trás.
O sol tinia sobre sua cabeça como um sino maligno dourado, mas o horizonte era negro e cinzento, há alguns quilômetros daqui já chovia, Deus abençoava aquele cerrado poeirento cheio de plantas secas e venenosas com a sua tão preciosa água! Havia se lembrado enfim daquele pedacinho de mundo esquecido.
Correu pra dentro do carro. A chuva chegou. Foi uma torrente repentina e avassaladora que nublou toda a sua visão, a chuva foi tão forte que fez a estrada desaparecer em questão de segundos, e o cerrado à beira da estrada se tornou um nada além de vultos distorcidos pela água que escorria no vidro da janela do carro. O mundo lá fora havia sumido, ali dentro estava abafado como um forno. Dimitri abriu o vidro da janela da frente por impulso, para tentar fazer entrar um pouco de ar, mas o que entrou foram jatos e mais jatos de água gelada. Ele fechou.
- Ótimo, maravilhoso!
O tempo pareceu se arrastar, o tédio o estava dominando aos poucos. Tentou todas as posições possíveis naquele banco traseiro, tentando dar conforto para a sua coluna já massacrada pelos anos na luta. Frederico tinha a quem puxar, seu pai era alto, corpulento e musculoso, o filho era uma versão pouco franzina do mesmo, mas tinha os ombros largos, de modo que um carro qualquer não os comporta com o conforto devido, porém o dinheiro estava escasso naqueles tempos difíceis. Dinheiro! Ele estava a caminho de um serviço nessa cidade vizinha, quilômetros que podiam ser percorridos em poucas horas dispensáveis se estivessem asfaltados. Mas que grande porcaria.
Talvez o sol tivesse afetado sua cabeça, talvez aquelas sombras se movendo lá fora fossem só mais variações da distorção da água no vidro da janela do carro, mas quando o homem suado quase adormecia, e algo bateu com força na traseira do automóvel parado de motor inutilizado, ele sentiu que era hora de sair daquele lugar. Aquela estrada estava mexendo com a sua cabeça. Ele tentou se esgueirar para ver do que se tratava, na esperança de que fosse um outro carro. Nada. Não havia nada lá. Mas a coisa que se chocou contra ele fora grande o bastante para movê-lo alguns centímetros.
De repente ele sentiu medo. Era a primeira vez que aquele medo o afetava. O medo puro e indescritível. Ele tinha que sair dali.
Na chuva já fraca ele correu como o Diabo foge da cruz. Correu com todas as suas forças, sentindo-se perseguido, observado, correndo sério perigo de vida. O cerrado acabou e uma floresta densa abriu-se ao seu redor, uma floresta de árvores grossas de copas altas e pouco espaço entre elas. A terra alaranjada e poeirenta havia enfim se tornado barro, sopa de lama, e de repente era como andar sobre ovos, o chão estalava, era como andar a beira de um lago cheio de pedrinhas soltas. Um lago de seixos. Dimitri estava fora de si, flutuando entre seus delírios e a realidade, vendo sombras e vultos, andando por força do sobrenatural, pois forças próprias ele não possuía. Nenhuma. Era um errante, um zumbi, um morto vivo tremendo de frio e de fome.
A chuva parou enfim, e após muito andar, cada passo fazia seus ossos gritarem, eles pareciam vidro cortando dentro da carne, as canelas já estavam duras. Já era noite quando ele encontrou a clareira. O poste acendeu sua grande lâmpada amarela no exato momento em que ele pisou no pátio da casa cor-de-pão. Sentindo os azulejos gelados após retirar o sapato surrado pela estrada maldita. Luz elétrica, ar condicionado, micro-ondas, fogão e muita comida na dispensa, roupas e camas feitas, lençóis quentinhos e um computador antigo que rugia ao ser ligado e fazia tremer a mesinha onde ele estava. Um HD cheio de músicas e mais nada. Nenhuma pista do dono da casa.
O dono nunca apareceu.
Todas as tentativas de achar a saída daquela estrada foram em vão.
E tem sido assim durante dois anos.
Até aqueles dois jovens aparecerem perdidos à sua porta.





capítulo curtíssimo, rs

terça-feira, 22 de março de 2011

Apelo pessoal...


Espero do fundo do meu coração que o momento (ridículo, idiota, desnecessário, involuntário e infuncional) pelo qual estou passando não afete a qualidade deste blog.

Sempre odiei poemas de amor, toda aquela baboseira e afins, não SU-PÓR-TÔ, acho super anos 1990, coisa de menina de 15 anos que nunca beijou, enfim, acho super tosco, e estou lutando contra o impulso de não tornar este blog tosco.

Enfim, vou me deitar e tentar dormir, tentar afastar aquele ser do meu pensamento e cair no mundo dos sonhos, único lugar seguro onde estou a salvo de mim mesmo e da minha paixonite ridícula. Um beijo.


L.M.

Aqui Jaz Uma Carta de Amor


Que ela descanse em paz

segunda-feira, 21 de março de 2011

Capítulo IV – Frederico Mimieux e As Feiticeiras das Montanhas


O Sr. Mimieux rolou para dentro da vala com a filha e arrastou-a para o lado mais fundo da fissura entre o bosque e a estrada. Frederico desviou por sorte da segunda lança e correu para a floresta aos berros de espanto. Atrás dele, vinham seres incrivelmente brancos, usando roupas coloridas e berrantes, cheias de detalhes riquíssimos de renda em seus mantos nas cores do arco-íris. As coisas pulavam de galho em galho, atracavam-se nas árvores e depois tomavam impulso para lançarem-se em direção ao tronco seguinte como macacos multicolores. Rostos inexpressivos por vezes pintados de azul e por vezes usando máscaras tanto maravilhavam Frederico quanto o deixava mais apavorado. As coisas eram silenciosas, os poucos movimentos que faziam para flutuar entre os galhos produziam leves ruídos como a brisa da manhã soturna beijando os ciprestes.
Algumas das criaturas etéreas usavam mantos brancos também, as três primeiras pareciam estar enfiadas dentro de batas de juízes, com todos os babados frontais que se tem direito. Suas flechas eram tão rápidas e tão certeiras que não acertavam Frederico apenas por sorte. Os três seres também usavam coroas, lindas coroas amarelas que lembravam os capacetes dos antigos samurais do Japão feudal, tempos remotos e distantes do oriente, tempos de lendas e assombrações, de batalhas às cegas e assaltos furtivos nas matas. Era exatamente este sentimento que Frederico tinha ao ser perseguido por aquele bando de monstros. Eram sete no total, sete criaturas vestidas em panos exuberantes, luxuosos, riquíssimos em detalhes, cores e formas. Umas tinham rabos, outras tinham orelhas, e algumas até asas, asas de pano e lã. Máscaras de crochê.
Antes de alcançar a encosta da montanha, Frederico atingiu um campo aberto, um campo cinza e pedregoso de monumentos e monólitos pontiagudos e cheios de escrituras antigas, o tesouro que seu pai tanto procurara há minutos atrás antes do ataque daquelas harpias saltadoras.
Assim que o rapaz atingiu o meio daquele campo, o desespero o acertou em cheio como um trem descontrolado nos trilhos: as coisas voadoras o pegariam exatamente ali, num lugar descampado, desprotegido, sem árvores, sem uma caverna ou um arbusto para se esconder. Mas, para sua surpresa, ao virar-se para trás, deparou-se com uma cena intrigante, e muitas coisas lhes foram reveladas:
As criaturas que o perseguiam nada mais eram que belas mulheres fantasiadas, empunhando espadas, adagadas, lanças e arcos de flechar. Vestidas em sua lã, sua seda, seu algodão e seu crochê, usando chifres, coroas e máscaras, rostos pintados ou enrolados em tiras de gaze pintadas em tribal, as “amazonas” por assim dizer estancaram no exato limite entre o descampado de pedra e as árvores da floresta calada.
- QUEM SÃO VOCÊS?! – gritou Frederico. O eco da sua voz sacudiu as paredes ao seu redor – QUEM SÃO VOCÊS?! – ele gritou novamente. Não houve respostas. Elas eram manequins enfeitando vitrines selvagens.
- Biz die cadılar, fırtınalar ve rüzgarlar kızları üfleme bu topraklarda yıllarca sessiz durduruldu sizi çevreleyen dağların sahipleri var! Killer spektrumları olanlar, işgalciler nefret edenler Dağlar Korkutucu tarafından 300 yıldır mücadele edildi!
- Mas que diabos de língua é essa... – resmungou Frederico para si mesmo.
- Bü Türk’s – gritou um dos espectros. Frederico surpreendeu-se com a voz do que até há alguns segundos era apenas um monstro – É turco!
- E porque vocês não falam comigo em português?! – gritou ele de volta.
Fez-se grande rebuliço entre as criaturas. A que havia respondido tornou a falar:
- Tua língua é proibida na nossa terra, humano, estas montanhas se calaram no exato momento em que ouviram a voz do homem pela primeira vez. A floresta prendeu sua respiração e os Espíritos de Olhos Amarelos que servem a Ousama trouxeram aquele a quem tu chamas de pai para calá-la!
A ordem dos fatos estava invertida, mas Frederico entendera exatamente o que havia acontecido. A sombra que ele vira no banco do cobrador era um ser, um ser representante de um povo que agora monopolizava o poder naquela cordilheira. Estes seres trouxeram seu pai para a floresta a fim de calá-la, pois esta, por algum motivo, não gosta da voz dos humanos.
- E porque eles trouxeram a mim e a minha irmã para cá?! – gritou Frederico – o que eles querem, o que VOCÊS querem?!
Mais rebuliço. A mulher respondeu de novo:
- Eles sabem que vocês têm o sangue! O sangue do Rei dos Monstros corre nas veias dos três, o sangue que cala a cordilheira inteira, sangue que será derramado em nome de Ousama na noite da lua vermelha, daqui há duas Coronas. Nosso mundo cairá no abismo, e então o grande terremoto sacudirá as terras do outro lado dele, e os que possuem cornos brotarão da terra como erva daninha, permeando o teu mundo de norte a sul. A nova era irá começar.
- E para isto eu e a minha família temos de morrer?! – esbravejou Frederico, revoltado.
- Não, só tu vais morrer, porque tu és o cordeiro desta oferenda! – respondeu a bruxa – nascestes com o único objetivo de morrer para que uma nova era reluza como um novo sol... Mas se tu morreres antes, a profecia jamais se cumprirá, e o teu mundo jamais sofrerá a Grande Calamidade do começo da Era dos Monstros. Nós, as Feiticeiras Mascaradas das Montanhas repudiamos aos Monstros e aos Humanos, sendo que não fazemos parte nem de uma raça nem de outra, e não permitiremos jamais a união do nosso mundo com o teu! Auriel é como as sombras chamam a esta cordilheira! Este nome nos ofende!
- Então porque vocês não vêm até aqui para me matar?! O QUE ESTÃO ESPERANDO?! – urrou Frederico em resposta, sua voz estava ficando mais alto, e suas lágrimas escorriam cada vez mais sorrateiras e aos montes.
- Este lugar que pisas não faz mais parte do nosso domínio... Tanto que nem as árvores aí cresceram... – ela silenciou por alguns segundos – o solo que pisas é amaldiçoado, é onde os discípulos de Ousama arrebentaram as gargantas de cem porcos em nome de seu rei tirano!
- Mas porque eles fizeram isso?! Qual o objetivo de tanto derramamento de sangue?! – exclamou um Frederico, pouco mais calmo, ainda preocupado com o estado de seus familiares. Teria seu pai sido atingido por alguma flecha ou sua irmã cortada ao meio por alguma lança? Aquela ideia medonha revirava seu jovem estômago de pernas para o ar como se um estorninho estivesse debatendo-se preso nos cordões de tripa ocultos por sua barriga musculosa e lisa como a pele de um bebê.
As feiticeiras gargalharam por trás de suas máscaras de crochê, seus elmos de metal, suas bandagens e vendas.
- Do que estão rindo?! Do que estão rindo?! – Frederico tornou a elevar sua voz.
- De ti, bobo! De ti! – disse a única bruxa que falava a língua dos homens, seu nome ela Kärla, a Caçadora, tinha os cabelos escuros e compridos, brilhantes como as mechas de uma sereia legendária, sua pele perolada misturava-se num balé perfeito com as cores da sua túnica, do seu manto branco rendado, mais lembrava um fantasma do que um ser humano, uma assombração vestida para o carnaval veneziano. – tu não sabes? Não sabes que o maior desejo de Ousama é virar gente? Não sabes que só sangue o libertará da forma monstruosa em que se encontra?
- Claro que não! Eu não vivo aqui! Eu não moro aqui! Eu nem deveria estar aqui, eu deveria estar em casa! – chutou um dos monólitos com força, este inclinou-se e caiu, espatifando-se em meio aos cascalhos, partindo no meio. As feiticeiras olharam estarrecidas àquela cena, silenciosas, apavoradas.
- Tu acabaste de te condenar, humano! Eles estão vindo! – fez a feiticeira, tomando uma atmosfera tenebrosa para si mesma. Uma leva de vultos fantasiados saltou por entre as árvores numa rapidez sobre-humana, sumindo em meio às folhagens como macacos coloridos sem nenhum ruído sequer, assombrações das matas que eram.
- Eles quem?! – exclamou Frederico – ELES QUEM?! – urrou, seu urro ecoou pela cordilheira. Em resposta, um uivo gorgolejante e gutural foi ouvido de norte a sul naquelas terras esquecidas e obscuras, e cada ser oculto pelas sombras contorceu-se de pavor, os cadáveres das feiticeiras mais velhas congeladas e conservadas pelo gelo dos cumes mais altos das montanhas contorceram-se em suas covas ovais de pedra.
- Os servidores de Ousama... – sibilou. E partiu, praticamente evaporou, desapareceu como surgira, num passe de mágica.
O silêncio era mortal, com toda a certeza Frederico estava longe demais da estrada para correr até lá e procurar por sua família, mas havia um frio e um medo, quais ele nunca havia sentido como sentia naquele momento, e aquilo congelava-o dos pés à cabeça, e mantinha cada músculo retesado e esticado abaixo da sua pele, impedindo-o de se mover. Era pavor, puro pavor, como se o próprio diabo o estivesse abraçando, uma presença maligna estava tomando forma ao seu redor, ela era quase palpável, ele poderia esticar a mão e tocar no mal, se pudesse.
A fumaça negra começou a escapar do chão aos poucos, tímida, como se o inferno estivesse queimando abaixo dos pés de Frederico, mas assim que aquela densa névoa negra alcançou suas narinas, seu estômago já fragilizado de medo deu a volta completa numa pirueta mortal. Aquilo fedia, fedia como uma montanha de cadáveres em decomposição, a mão escura e oleosa que esticou-se para fora dos cascalhos feito uma pata de aranha agarrando seu tornozelo foi o beliscão para o seu despertar. O que ele estava fazendo ali?!
- Você está bem, Amélia? – o pai apalpava os ombros e os braços da garota com calma, os dois haviam se arrastado para fora da vala como rãs gordas e preguiçosas, e agora se limpavam da sujeira, retirando folhas e galhos das roupas enquanto limpavam a terra de seus rostos e traseiros.
- Estou, estou bem... – respirava com dificuldade enquanto seus olhos espertos vasculhavam a área, nem sinal de monstros fantasiados, nem de arcos e nem de flechas. O ar continuava frio e parado como sempre fora.
- CORRAM! CORRAM! – os gritos de Frederico ecoavam dentro da densa floresta, pareciam vir de todas as direções, era como se a montanha estivesse falando, berrando, avisando do perigo iminente.
- FRED! FRED! – Amélia livrou-se dos braços do pai e correu floresta adentro. Os gritos pareciam muito distantes, ela não sabia de que direção vinham, estava desesperada.
- NÃO, AMÉLIA! – exclamou o Sr. Mimieux, logo às suas costas, perseguindo a filha numa corrida alucinada desviando de troncos, pedras e arbustos espinhosos.
- AMÉLIA, VOLTA! VOLTA! – Fred surgiu ao fundo da paisagem, rodando seu braço direito no ar, expulsando a irmã da mata, vinha correndo em desabalada carreira, saltando por sobre os obstáculos como um verdadeiro atleta – FORA! FORA DAQUI! OS DOIS! CORRAM PARA CASA! PARA CASA!
- FRED! FRED! – Amélia ignorava os gritos do irmão e do pai, continuava indo ao encontro do rapaz a toda velocidade.
- AMÉLIA, VOLTA! – rugiu o Sr. Mimieux logo atrás, tentando a todo custo alcançar a garota. Os dois caíram juntos, Mia tropeçara numa pedra e seu pai tropeçara sobre ela, e só caídos e de pernas pro ar puderam ver do que o irmão Mimieux mais velho fugia. Uma fumaça negra vinha logo atrás, a toda velocidade, repleta de braços e pernas escapando-lhe por entre as densas nuvens enquanto olhos amarelos nervosos e fora de órbita giravam tontos pra lá e pra cá, era uma imagem grotesca e assustadora. Amélia gritou e levantou-se de imediato, puxou o pai pelo colarinho com uma força que ela nem sabia que tinha e correu. Correu como nunca havia corrido, aos berros, as lágrimas escorrendo e se espalhando pelo musgo do caminho conforme o percurso. Em pouco tempo, a Família Mimieux corria lado a lado, para fora da floresta, para a estrada, com uma nuvem negra amorfa e viva logo atrás, teimando em persegui-los, na tentativa de engoli-los.
Agora não era só Frederico que tinha uma mão negra apertando seu coração com força, seu pai e sua irmã também temiam pelas suas vidas como nunca temeram antes. O ser humano teme o desconhecido como jamais há de temer outra coisa neste ou em outro mundo, e aqueles três seres perdidos na cordilheira desconhecida eram a prova disso, a prova de que estamos a mercê dos nossos medos e das nossas inseguranças. Nas piores horas as pernas falham e os joelhos não se permitem dobrar para dar o impulso, nas piores horas o cascalho cinzento da estrada não parece tão unido quanto antes, as pedras embaixo dos pés estalavam e reclamavam, se esfregando umas nas outras, provocando tombos repentinos em meio à fuga. Era como correr sobre bolinhas de gude, elas encostam umas nas outras e rodam e giram embaixo da sola dos sapatos, te fazendo escorregar e cair.
- A casa! A casa! – urrou o pai, apontando para a clareira que já despontava na vista. E eles não haviam corrido nem três minutos sequer! Ao sair de casa haviam andado por mais ou menos uma hora para chegar àquele lugar estranho onde encontraram o artefato em forma de mão com o olho no centro! Os irmãos Mimieux finalmente viram que o pai falava a verdade, aquele lugar era completamente anormal.
A luta pela vida foi acentuada na subida da ladeira que levava à clareira, se era difícil descer dali sem escorregar, imagine então subir, correndo àquele monte de seixos e cascalho soltos. Era impossível!
Foi então que Amélia soltou um berro de rasgar a parede dos tímpanos. Frederico olhou para o lado e viu a irmão rolar ladeira abaixo como numa esteira, indo em alta velocidade em direção à uma boca negra cheia de dentes brancos que se abrira em meio à fumaça. Para seu espanto, um vulto cor de madeira surgiu no céu. Era um pássaro gigante, uma versão enorme daqueles pequenos passarinhos que fazem ninho nas calhas da casa, daqueles que cabem na palma da mão. Capturou Amélia pela perna e a lançou no centro da lareira, sumindo da mesma forma que apareceu, por entre as árvores, sem deixar sinal.
Aquilo foi tão perturbador que Frederico e seu pai ficaram sem palavras perante tal absurdo, e quando mal deram por si, já estavam no topo da ladeira, com a fumaça negra cheia de braços e pernas logo atrás.
- PEGUE SUA IRMÃ E ENTRE NA CASA! RÁPIDO! RÁPIDO! VAMOS! – urrava o pai no ouvido do garoto. – NADA PODE ENTRAR NA CASA, NADA DE FORA PODE ENTRAR! NADA!
Em uma fração de segundos eles já estavam em frente ao portão fechado, abrindo-o com violência e lançando-se sobre o pátio de azulejos azuis. Por incrível que pareça, a fumaça envolveu a casa como um enorme polvo abraça a vítima no fundo da bacia de corais, mas não entrou pelas frestas das grades. Milhares de olhos se abriram no escuro e ficaram maiores, maiores, grandes como bolas de basquete e estouraram num mar de sangue que tingiu a fumaça de vermelho e a dissipou como mágica. Logo parecia que ela jamais havia existido. E todo o medo deu lugar ao alívio dos irmãos Mimieux.



A Pior Coisa...


...que pode acontecer a um ser humano
Não é morrer
Não é adoecer
Não é empobrecer
Tudo se espera, tudo se supera
A pior coisa que pode acontecer a um ser humano
É se apaixonar
Nada se espera
Nunca se supera


Louie Mimieux